sábado, junho 19, 2010

Contemporânea fala de SARAMAGO - Segunda Parte

Os desaforos de Saramago


por Gregório Dantas
Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, Gregório F. Dantas é professor de Língua Portuguesa das Faculdades de Campinas (FACAMP) e Professor de Literatura convidado do Centro Universitário Padre Anchieta. Não acredita no fim do livro nem da literatura, mas se preocupa com o número de leitores. Mantém um blog para trocar idéias com os alunos: http://linguaeliteratura.wordpress.com



José Saramago, responsável por alguns dos romances mais interessantes dos anos 80 em Portugal — História do cerco de Lisboa entre eles — vem cometendo nos últimos anos livros como Ensaio sobre a lucidez ou As intermitências da morte, obras que muito têm colaborado para criar a imagem de um autor à beira do esgotamento de seus temas e recursos literários. Justiça seja feita, dois de seus últimos lançamentos, As pequenas memórias e A viagem do elefante, sem serem originais ou particularmente marcantes, são livros que entretém, e podem agradar os leitores de boa fé: seu texto é irônico, envolvente, menos difícil do que parece (o que ajuda o leitor a se sentir inteligente) e alcança algum lirismo em momentos bastante insuspeitos. Porém, quando Saramago retoma seus “grandes temas”, a pretensão da fábula obscurece qualquer prazer que o texto ainda possa despertar em seu fiel leitor. É o caso de Caim, seu último livro, e seguramente um de seus trabalhos menos interessantes.

Caim é um romance pretensioso e por demais ingênuo em suas má criações com a Bíblia. É bem diferente de O evangelho segundo Jesus Cristo: neste romance, tanto Jesus quanto seu pai terreno, José, são personagens bem construídos, como motivações bem definidas e conflitos coerentes com suas trajetórias. Há, enfim, coerência interna, independente das críticas que se possa fazer à abordagem da história bíblica. Já no caso de Caim, seu protagonista, o irmão assassino de Abel, é apenas um pretexto para que o narrador possa julgar os episódios do velho testamento ao seu modo: como grandes exemplos da crueldade divina contra o homem.

A tese é explícita, e falta ao texto coerência interna: as viagens no tempo de Caim revelam as arbitrariedades de um narrador onipotente e tendencioso demais para que a história possa ser vista como algo mais do que a reunião de exemplos para sua “argumentação”. Nesse sentido, Caim é apenas um títere que serve aos propósitos do narrador. Mas também falta, digamos assim, rigor argumentativo, para um livro que se propõe, aparentemente, a “revelar” os absurdos do discurso religioso. Por que atacar a religião cristã através das histórias bíblicas, as quais muitos teólogos sérios admitem que não devem ser lidas literalmente? Não haveria outros caminhos, mais produtivos, para a argumentação sobre assuntos tão graves e importantes? Nesse contexto, os momentos de suposto humor — como a cobiça de um anjo pelos seios descobertos de Eva — soam apenas como desaforos ingênuos, inadequados à pretensão e à seriedade da tese do romance. Infelizmente. Em outros momentos de sua carreira, o autor soube manejar melhor esses mesmos procedimentos narrativos.

Vale dizer que as reações de repúdio ao romance — como a sugestão de um político para que Saramago renunciasse a sua cidadania portuguesa — também foram exageradas, para dizer o mínimo. Pena que um assunto tão rico venha sido tratado de maneira tão superficial, também pelos críticos do romance. Tanto eles quanto José Saramago poderiam fazer melhor.

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