sábado, junho 19, 2010

Contemporânea fala de SARAMAGO - Primeira Parte

Caim ou de como contar a mesma história


por Jaqueson Luiz da Silva
Doutor em Teoria e História Literária pelo IEL/ UNICAMP. Professor de Teoria Literária e Literatura Portuguesa no UNIANCHIETA. Também não acredita no fim do livro. Acredita, porém, que um leitor possa se fazer com um único livro.


Na busca de se explicar os grandes autores, a História Literária busca conceitos e categorias que parecem instrumental analítico, mas que podem criar armadilhas que dizem tudo e dizem nada ao mesmo tempo e, desse modo, impossibilitam a discussão. Podemos pensar que é bem assim o que acontece com José Saramago quando articulamos a expressão “realismo mágico” para classificar seus principais textos. Dizer isto é pressupor que a realidade não possa ser mágica ou que a “mágica” ou o “fantástico” não sejam elementos intrínsecos e constitutivos da realidade, equivocadamente, opondo-o ao Realismo do século XIX que, a meu ver, esforçou-se sobremaneira para demonstrar justamente a condição sobre-humana e trágica e por isso mágica, se se quiser maravilhosa, do que chamamos de vida cotidiana.

Dizendo isto de Caim, nada se pode mais dizer a não ser o que já está dito e consagrado sobre Saramago. Outro jeito, driblando o calor da hora, pois a literatura como uma das “ciências da memória” necessita do tempo, para não ser levada por afirmações reducionistas, seria dizer que Caim é a memória de Saramago: fórmula repetida, mesma heresia. Há que se lembrar também o título sintomático do penúltimo texto A viagem do elefante.

O narrador elaborado por Saramago seria o elemento narrativo responsável por reconhecer e ficcionalizar o mito em meio às coisas mesquinhas do cotidiano, ou melhor, a ficção presente na vida. Um narrador que não se contenta em tecer um tempo narrativo apenas, mas que se enreda em todos os tempos possíveis, compreendendo-o como um trevo de quatro folhas. A mente de um contador de história não se situa no instante em que conta, mas desloca-se no futuro e no passado. É o seu corpo e o corpo da ficção que estão presentes. Talvez seja desta forma que o narrador faz Caim presenciar os fatos do Gênesis até a Arca de Noé, quando se opõe aos novos planos de Deus de repovoar a Terra.

Dentro da tradição judaico-cristã, Caim é o primeiro grande criminoso. Consta somente que matou seu irmão Abel e foi posto como peregrino na terra sob a sombra de Deus: um intocável a quem ninguém poderia levantar a mão para matar. Por onde andou e o que fez o narrador bíblico não tem mais palavras.

Bem, são esses feitos que o narrador de Saramago, talvez o mesmo ou o inverso do bíblico, vai contar. Talvez o enredo do romance seja o grande combate de Caim com Deus, sua condição atéia de agir e refutar os planos divinos para a humanidade. Todavia, é possível observar que Caim se estabelece como o grande aliado de Deus, aquele que insiste em dizer que o plano humano é fadado ao fracasso e que Ele se arrependerá mais uma vez. Paradoxalmente, ele seria a prova que de fato o humano é possível, mesmo que ele seja único sobre a Terra, ratificando a vinda de Cristo séculos mais tarde à Arca de Noé.

É deste modo que os narradores de Saramago numa sintaxe e léxico pesquisados em tradições antigas, ao modo do poeta arcaico ou do cego de nascença de Ensaio sobre a cegueira que tudo vê da desordem do mundo daqueles que há muito deixaram de ver, contam sempre a mesma história, a partir dos mesmos lugares, dos mesmos provérbios, torcendo, retorcendo e repropondo como Ulisses na Odisseia que torna o episódio das sereias mais mágico ou mais real se isso o torna mais experto. É o que acontece no Memorial do Convento, por exemplo, em linguagem nada iluminada, que reconta o século XVIII com aquilo que nele mais foi negado: a superstição, ou seja, uma passarola guiada pela vontade humana e não pela sua razão; um colossal convento erguido pela fé e pelas mentes mais brilhantes da arquitetura; ou em O ano da morte de Ricardo Reis: dar vida à ficção e depois torná-la ficção e assim ao infinito; ou na mesma forma: dar vida ao mito em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em que o narrador prefere contar o maravilhoso de dentro do real e não de fora; a carne, porque o espírito já lhe compõe.

Neste sentido que penso em Caim, como último romance de Saramago, como aquele que repete heresias, no sentido daquele que inverte o modo de ver, olha melancolicamente para a obra e a vê em uma luta paradoxal que descrê no humano e crê no Deus, descrê no Deus e crê no humano incessantemente: condição tanto do ateu como do que tem fé.

2 comentários:

  1. Enquanto lia Caim eu tinha a sensação de que não era o mesmo Saramago. Sua ironia mordaz estava lá, a livre apropriação de ícones históricos e/ou bílicos também, seu ateísmo militante idem. Porém, tudo isso usado de forma chocante demais.

    Sutileza nunca foi a marca do autor - confesso que me falta ler algumas das obras e até algumas das mais aclamadas pela crítica, para poder generalizar -, mas seu tom já foi mais cuidadoso. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é exemplo disso, porque tem uma narração mais sensível e não parece querer distorcer fatos bíblicos, mas, a partir de alguns ganchos evangélicos, contar uma nova versão.

    Em Caim acredito que ele peca em alguns pontos. Parece que Saramago não se preocupa em deixar claro que quer chocar, ironizando passagens bíblicas em claro tom de deboche. Lembrou-me muitas vezes Nietzsche, em "O Anticristo", mas neste, o tom tem mais contexto, já que pretendia iniciar na obra do filósofo a quebra dos valores cristãos. Já em Caim, o romancista parece claramente utilizar a sua liberdade literária para a desforra da pessoa Saramago, que foi duramente criticada pela Igreja católica e pelo governo português por suas heresias anteriores.

    Nesse ponto, como apreciador da sua obra, não pude deixar de tentar encontrar explicação para o que me incomodou em Caim. Sinto uma certa deslocação cronológica desse livro dentro da obra saramaguiana. Caim talvez fizesse mais sentido se tivesse precedido O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mas também - e essa é minha impressão mais forte - faria ainda mais sentido se fosse introdutório a alguma outra obra maior, talvez usando mesmo tema ou heroi.

    Precisava reafirmar suas (des)crenças tão causticamente como se fosse a primeira vez que o fizesse? Acredito que não. Saramago já podia seguir adiante.

    ResponderExcluir
  2. Esqueci de pedir licença para fazer uma crítica ao livro ao invés de simplesmente comentar o artigo. Desculpe, mas eu sempre me impolgo quando o assunto é Saramago.

    Foi minha homenagem a um dos meus autores preferidos. O incansável escritor, tutor e amante ciumento da Língua Portuguesa foi um dos últimos a defender o pensamento como o caminho para a liberdade. Apenas por isso já merece respeito.

    ResponderExcluir